'Ela se mordia de dor', relata mãe de jovem presa injustamente que morreu de câncer dois meses após ser absolvida no RS
03/11/2025
(Foto: Reprodução) Jovem presa injustamente por 6 anos morre de câncer dois meses após ser absolvida por júri
Damaris Vitória Kremer da Rosa, 26 anos, morreu 74 dias após ser absolvida por um júri no Rio Grande do Sul. Ela passou seis anos presa preventivamente por um crime do qual foi inocentada. Durante esse período, afirmou à mãe Claudete Kremer Sott, 51 anos, ter enfrentado dores intensas causadas por um câncer no colo do útero que só foi diagnosticado quando já estava em estágio avançado.
Claudete concedeu entrevista à jornalista Gabriela Plentz, da Rádio Gaúcha, sobre os últimos meses da filha e os anos de sofrimento dentro do sistema prisional. Segundo ela, a jovem 'se mordia de dor'.
“Presas diziam que estavam morrendo de dor, iam lá pedir medicamento e repassavam para ela, porque não aguentavam ver ela gritando de dor e não davam um paracetamol para tomar”, conta Claudete.
📲 Acesse o canal do g1 RS no WhatsApp
Damaris foi presa em agosto de 2019, acusada de envolvimento no homicídio de Daniel Gomes Soveral, ocorrido em Salto do Jacuí, em 2018. Segundo a denúncia, Damaris teria atraído a vítima ao local do crime.
A defesa sustentou que ela apenas relatou ao então namorado, Henrique Kauê Gollmann, que havia sido estuprada por Daniel. Henrique foi condenado, enquanto outro suspeito, Wellington Pereira Viana foi absolvido, e Damaris só foi julgada em agosto de 2025, quando foi inocentada por falta de provas. (saiba mais abaixo)
Durante o período em que esteve presa, Damaris passou por, ao menos, quatro unidades prisionais. Claudete descreve condições degradantes, especialmente no presídio de Rio Pardo:
“É uma antiga senzala onde as baratas caminham por cima das camas, por cima dos alimentos. Não tem pátio nem para as visitas. Quando chove, a gente fica na chuva", comenta Claudete.
O g1 entrou em contato com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) do Rio Grande do Sul, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Poliglota e fã de literatura: quem era a jovem
A mãe ainda relata que a filha passou um ano com dores intensas sem atendimento médico adequado, e diz ter enfrentado dificuldade para conseguir auxílio para a filha. Em março deste ano, Damaris foi levada a um posto de saúde:
“Quando [o médico] foi tocá-la, o jaleco dele e a sala toda ficaram banhados de sangue. Ele disse que dali ela só sairia de ambulância para o hospital".
O diagnóstico foi de câncer em estágio avançado, com metástase. A prisão foi convertida em domiciliar em março de 2025, e Damaris passou a usar tornozeleira eletrônica, mesmo durante o tratamento oncológico.
“Ela fazia quimioterapia e radioterapia todos os dias. Ia e voltava gritando de dor. Tomava morfina a cada quatro horas e mesmo assim não fazia efeito", conta Claudete.
Apesar da gravidade da doença, os pedidos de soltura foram negados pelas autoridades por anos. Claudete contesta:
“Como comprovar uma doença grave se não permitiam uma avaliação concreta? Diziam que ela era hipocondríaca".
Em nota, a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) do Rio Grande do Sul disse que, "durante o período em que esteve sob custódia da Polícia Penal, Damaris recebeu 326 atendimentos técnicos, dentre eles 59 atendimentos médicos de diversas especialidades; 51 atendimentos de enfermagem; 67 atendimentos do serviço social; e 56 atendimentos psicológicos". (leia, abaixo, na íntegra)
Após a absolvição, Damaris tentou retomar a vida. Queria cursar Biomedicina, sonhava em estudar e recuperar o tempo perdido.
“Ela disse: ‘Mãe, eu não vou desistir. Eu quero realizar meus sonhos, meus projetos’”, relata.
Nos últimos dias, Claudete esteve ao lado da filha no hospital. A despedida foi marcada por dor e amor:
“Ela abriu os olhos, olhou pra mim e deu um suspiro de alívio. Eu disse: ‘Vai com Jesus. Daqui a pouquinho, a mãe vai encontrar com você".
Infográfico - Jovem presa injustamente por 6 anos morre de câncer dois meses após ser absolvida
Arte/g1
Prisão e pedidos da defesa negados: a cronologia do caso
Conforme os registros da Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo, aos quais o g1 teve acesso, Damaris foi presa preventivamente em agosto de 2019, por suposto envolvimento no homicídio de Daniel Gomes Soveral, ocorrido em novembro de 2018, em Salto do Jacuí, no Noroeste do RS.
A denúncia foi oferecida à Justiça em julho de 2019. Na ocasião, a Promotoria alegou que Damaris "ajustou o assassinato juntamente com os denunciados" e manteve "conduta dissimulada, um relacionamento com a vítima, de modo a fazê-la ir até Salto do Jacuí, local estipulado para a execução".
Conforme o MP, outras duas pessoas tiveram envolvimento na morte: Henrique Kauê Gollmann (namorado de Damaris na época) e Wellington Pereira Viana. Henrique teria efetuado o disparo que matou Daniel, e Wellington "concorreu para a prática do fato ao ajustar e auxiliar na organização do homicídio".
Henrique foi preso no Presídio Estadual de Venâncio Aires. O júri o condenou pela morte. Welligton chegou a ser levado para o Presídio Estadual de Santa Cruz do Sul. Ele foi absolvido das acusações.
A defesa de Damaris sustenta que ela apenas contou a Henrique que teria sido estuprada por Daniel. Em retaliação, ele teria assassinado o homem e ateado fogo no corpo.
Ao longo do processo, foram protocolados pedidos de revogação da prisão de Damaris, que receberam pareceres negativos do Ministério Público e foram indeferidos pela Justiça. Ela relatava problemas de saúde, como sangramento vaginal e dor na região do ventre. (Veja imagem abaixo)
"Apesar da suposta fragilidade na saúde da ré, tal alegação é pautada em mera suposição de doença, tendo em vista que os documentos médicos juntados nos autos apenas apontam a indicação de ingestão de medicamentos, sem apontar qualquer patologia existente e sem trazer exames e diagnósticos", argumentou o MP.
"Não há demonstração suficiente de a ré estar extremamente debilitada por motivo de doença grave, na medida em que os documentos médicos são meros receituários médicos, sem apontar qualquer patologia existente e sem trazer exames e diagnósticos", pontuou a Justiça.
Prontuário médico de Damaris Vitória Kremer da Rosa
Reprodução
Tornozeleira e júri
Damaris passou por penitenciárias em Sobradinho, Lajeado, Santa Maria e Rio Pardo. Apenas em março de 2025, a prisão foi convertida em domiciliar. A decisão se deu em razão do agravamento dos problemas de saúde da mulher.
No mesmo mês, foi determinada a instalação de monitoramento eletrônico, conforme ofício expedido. Em abril, a Justiça autorizou, a pedido da defesa, que Damaris permanecesse na casa da mãe, em Balneário Arroio do Silva (SC), com tornozeleira.
"Fiz petições manifestando que ela estava tratando câncer e precisava transitar por hospitais. Ainda, havia a oscilação do peso. Pedi remoção da tornozeleira, mas nenhum desses pedidos foi atendido. Ela foi submetida a raio-x, exames, tudo com tornozeleira", relata a advogada Rebeca Canabarro.
O caso de Damaris foi a julgamento apenas em agosto. O Conselho de Sentença absolveu a jovem de todas as acusações a ela imputadas (ter matado a vítima e ateado fogo no veículo com o corpo dentro) por negativa de autoria baseada na falta de provas. Ela morreu 74 dias depois.
O que é prisão preventiva?
A prisão preventiva está prevista no Código de Processo Penal (CCP), quando o suspeito apresenta:
risco à ordem pública;
risco à ordem econômica;
risco ao andamento das investigações;
risco de fuga.
Também deve ser aplicada quando a liberdade do investigado gerar uma situação de perigo para a sociedade.
Damaris Vitória Kremer da Rosa morreu aos 26 anos
Arquivo Pessoal
O que diz a Susepe
"A Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo e a Polícia Penal do Rio Grande do Sul recebem com resignação a notícia de falecimento de Damaris Vitória Kremer da Rosa, egressa do sistema prisional gaúcho.
Damaris deu entrada no sistema prisional em 08.08.2019 para cumprir decreto de prisão expedido pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, sendo posta em liberdade por decisão judicial em 14.08.2025.
Durante o período em que esteve sob custódia da Polícia Penal, Damaris recebeu 326 (trezentos e vinte e seis) atendimentos técnicos, dentre eles 59 (cinquenta e nove) atendimentos médicos de diversas especialidades; 51 (cinquenta e um) atendimentos de enfermagem; 67 (sessenta e sete) atendimentos do serviço social; e 56 (cinquenta e seis) atendimentos psicológicos.
Além disso, Damaris foi encaminhada para internação hospitalar por duas vezes. A primeira, no período compreendido entre 17.03.2025 – 24.03.2025, no Hospital Regional Vale do Rio Pardo. A segunda, entre 24.03.2025 – 09.04.2025 no Hospital Ana Nery, quando recebeu conversão da segregação em estabelecimento de regime fechado para o monitoramento eletrônico, com autorização judicial de deslocamento para tratamento médico.
Cumpre observar que, de acordo com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade, o atendimento médico dispensado à população privada de liberdade deve ser realizado junto ao Sistema Único de Saúde, conforme disposições normativas e regulamentares do Ministério da Saúde e Secretarias Estadual e Municipal de Saúde. A responsabilidade da Polícia Penal no tratamento médico das pessoas custodiadas se restringe ao encaminhamento dos custodiados aos equipamentos do Sistema Único de Saúde e o acompanhamento de custódia, nos casos em que a internação se faça necessária.
Do relato sobre os atendimentos técnicos, sejam eles médicos ou psicossociais, observa-se que, durante todo o período de custódia da Sra. Damaris, a Polícia Penal empreendeu todos os esforços possíveis para fornecer o efetivo acesso ao direito à saúde da então custodiada, fornecendo todo o suporte para que as demandas médicas, psicológicas e sociais fossem atendidas de forma célere e efetiva."
O que diz o Tribunal de Justiça do RS
"O Tribunal de Justiça não se manifesta em questões jurisdicionais.
Com relação ao caso, foram avaliados três pedidos de soltura.
O primeiro em 2023, que foi negado pelo magistrado da Comarca, pelo TJRS e STJ em sede de recurso.
Quanto ao segundo pedido, em novembro de 2024, em que a defesa da ré alegava motivo de saúde, a decisão aponta que os documentos apresentados eram receituários médicos, sem apontar qualquer patologia existente e sem trazer exames e diagnósticos.
Em 18 de março de 2025, a prisão preventiva da ré foi convertida em prisão domiciliar, sendo expedido alvará de soltura. A decisão foi motivada pelo estado de saúde da ré, diagnosticada com neoplasia maligna do colo do útero, necessitando de tratamento oncológico regular.
Ainda em março de 2025, foi autorizada a instalação de monitoramento eletrônico, conforme ofício expedido ao Instituto Penal de Monitoramento Eletrônico.
Em abril de 2025, a ré iniciou tratamento combinado de quimioterapia e radioterapia no Hospital Ana Nery em Santa Cruz do Sul, sendo posteriormente transferida para o Hospital Regional em Rio Pardo.
Em 09/04/2025, foi concedido parcialmente o pedido da defesa, autorizando:
a) a transferência e cumprimento de prisão domiciliar com monitoramento eletrônico por tornozeleira;
b) a permanência na residência da mãe da ré, em Balneário Arroio do Silva-SC; e
c) o deslocamento da ré até o Hospital São José em Criciúma para consultas e tratamento oncológico.
Em agosto de 2025, foi realizado o julgamento da ré pelo tribunal do júri, quando ocorreu sua absolvição pelos jurados."
O que diz o Ministério Público do RS
"Na primeira oportunidade em que foi informada nos autos a doença da ré, não houve comprovação desta informação. Mas, a partir do momento em que a defesa fez o segundo pedido de liberdade, alegando e comprovando a doença, a ré foi, então, solta."
VÍDEOS: Tudo sobre o RS