Fraude em licitações no RS: PF investiga desvio de recursos que teria prejudicado atendimento a pacientes
22/12/2025
(Foto: Reprodução) PF realiza operação contra desvio milionário da Saúde no RS e SP
Trocas de mensagens obtidas pela Polícia Federal levantam suspeitas de envolvimento de um funcionário público em um suposto direcionamento de licitação na Fundação de Proteção Especial (FPE), vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul.
A constatação ocorreu durante uma investigação que apurou indícios de fraude envolvendo o Instituto Riograndense de Desenvolvimento Social Integrado (Irdesi), presidido pelo empresário Humberto Silva, preso em novembro.
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Ele também é proprietário da Campi, formada por centros multidisciplinares especializados no atendimento de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outros transtornos do neurodesenvolvimento. A empresa venceu um pregão eletrônico em novembro de 2023 para prestar serviços à FPE.
O relatório da PF afirma que há “indícios concretos de manipulação de procedimento licitatório, por meio da utilização coordenada de duas pessoas jurídicas — Campi e Irdesi — controladas pelos próprios interlocutores”.
O documento foi obtido pela RBS TV e faz parte da operação Paralelo Cinco. Humberto Silva é suspeito de desviar recursos públicos da saúde, enquanto unidades administradas pela organização enfrentam falta de estrutura e de materiais básicos.
Os investigadores chegaram a essa conclusão a partir de um diálogo interceptado entre Humberto e seu advogado, indicando que ambos buscavam “simular pluralidade de proponentes para viabilizar o controle do certame, independentemente do resultado”, a partir da inclusão de ambas as empresas na licitação, com “controle prévio e coordenado” entre as propostas.
De acordo com a PF, “trechos da conversa demonstram elementos de que os investigados tinham acesso a 'informações privilegiadas' durante a realização do pregão eletrônico”. O principal indício seria o diálogo no qual o advogado pergunta a Humberto se “o cara [informante] já confirmou [se existem outras empresas disputando o pregão]". O empresário responde: “até agora, nada”.
A inclusão do Irdesi na licitação somente ocorreria em caso de necessidade. Seria uma “reserva técnica”, concluem os agentes. A Campi, segundo a PF, acabou vencendo o pregão, conquistando um contrato de R$ 25.989.600,00 por 12 meses com a fundação. O caso foi encaminhado pela Polícia Federal à Polícia Civil para apuração.
Entre os gastos investigados estão viagens internacionais, aluguéis de apartamentos à beira-mar e a compra de uma bolsa de luxo de R$ 30 mil para a esposa de Humberto.
Para justificar a saída dos recursos supostamente desviados, o Irdesi declarava gastos com serviços que, segundo a Polícia Federal, nunca foram executados. Uma das empresas investigadas é a Valquíria Serviços, que receberia R$ 260 mil por mês para realizar obras de manutenção no hospital de Embu das Artes, em São Paulo.
No endereço informado em Porto Alegre, a reportagem da RBS TV encontrou apenas pequenas casas em um beco da Vila Cruzeiro do Sul. A empresa está registrada em nome de Valquíria Silva Nogueira, ex-cozinheira de uma empresa ligada a Humberto. Abordada pela reportagem, ela confirmou ser a dona da empresa, mas se recusou a responder às perguntas.
“Só falo na presença de meu advogado”, afirmou, antes de uma vizinha tentar impedir a gravação.
No final de novembro, a PF deflagrou uma operação para investigar um esquema milionário de desvio de recursos da saúde envolvendo o instituto gaúcho, responsável pela gestão de unidades no Rio Grande do Sul e em São Paulo, entre elas o Hospital de Caridade de Jaguari, na Região Central do Estado. Desde 2022, a organização teria recebido cerca de R$ 340 milhões em verbas públicas, a maior parte proveniente de contratos firmados em São Paulo.
Ao todo, foram cumpridos 24 mandados de busca e apreensão no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. A Polícia Federal prendeu Humberto Silva e o principal braço direito dele. A Justiça também determinou o bloqueio de R$ 24 milhões em bens, incluindo carros de luxo.
As imagens reunidas pela investigação mostram Humberto e a esposa, Maíne Baccin, em viagens internacionais, noivado com espumante em frente à Torre Eiffel, em Paris, cruzeiros temáticos sertanejos e estadias em apartamentos à beira-mar.
Segundo a PF, as despesas teriam sido pagas com o cartão de crédito do próprio instituto. A investigação aponta ainda que o Irdesi bancava salários de até R$ 23 mil mensais para Maíne e para a ex-mulher de Humberto, Tássia Nunes, mesmo sem que ambas exercessem atividades.
Mais indícios apontados pela PF
Em um dos áudios obtidos pela Polícia Federal, Humberto reclama dos custos do casamento e menciona a compra de uma bolsa de luxo. “Daí me diz: ‘tu tem que trabalhar menos’. Mas como, se tu vai lá e compra uma bolsa de 30 mil?”, diz o empresário.
Em outra gravação, ele compara seus gastos com os do ex-companheiro da esposa. “O ex dela não dava nem um chinelo. Eu já dei dois carros zero e duas viagens. E uma viagem equivale a dois carros zero.”, compara.
Ele também ironiza os gastos com acessórios. “Só de óculos ela [a esposa] me gastou 20 conto, só de óculos. Eu não sei em quantas cabeças ela vai colocar esses óculos. Acho que tá levando pra vender.”, falou.
Segundo o delegado da Polícia Federal Anderson de Andrade Lima, o material reunido mostra que o empresário não demonstrava receio de ser responsabilizado.
“A impressão que dá, à medida que a gente analisava as provas, é de que ele realmente não tinha nenhum temor de que fosse alcançado pela Justiça, de que poderia gastar, de que o dinheiro era privado e que ele administrava da forma que quisesse, inclusive com bens particulares”, afirmou.
A investigação aponta que, contrariando as normas que regem as organizações sociais, o Irdesi visa lucro. E teria até sócios ocultos. Em um dos áudios anexados ao inquérito, Humberto reclama desses parceiros por ser o único exposto no esquema.
“Eu vou sugerir um negócio. Todo mundo fala, né, lucro do Irdesi, lucro do Irdesi. Eu acho que é 100% válido, mas acho que todo sócio tem que botar o CPFzinho ali, né? Vamos começar a arriscar os seus patrimônios, arriscar tomar uma cadeia.”
Efeitos em hospitais
As declarações contrastam com o que a reportagem encontrou em Jaguari, onde os reflexos do suposto desvio atingiram diretamente pacientes e familiares. Na cidade, quem precisa de tomografia precisa recorrer a municípios próximos e o serviço de ultrassonografia só funciona uma vez por semana. Existem ainda relatos de cobrança por atendimentos feitos na emergência e de falta de materiais.
O pai da comerciante Beth Pinheiro, Alcides Alves Pinheiro, de 85 anos, morreu durante uma crise de asma no Hospital de Caridade do município em 2023. A filha afirma que faltavam medicamentos e até um espaçador, equipamento simples para auxiliar na nebulização, que custa cerca de R$ 70 nas farmácias.
“Eu tive que sair para comprar. Daí eu voltei e vi uma enfermeira indo e vindo. O médico pedia a medicação, ela ia na farmácia do hospital e voltava dizendo: ‘não tem, doutor, não tem’”, relatou Beth. “Vinte minutos depois, eu perdi meu pai”, disse.
A reportagem também localizou uma ex-funcionária da limpeza do hospital, que disse ter existido ordens para economizar até desinfetante. Uma ex-enfermeira, que prefere não se identificar, lamentou a situação da unidade.
“Era um dinheiro que tinha sido investido para a saúde, que foi roubado da saúde”, afirmou.
O prefeito de Jaguari, Igor Tambara (MDB), informou que o município criou um comitê de crise para gerenciar uma intervenção na unidade de saúde e nomeou um interventor. “O que nós mais queremos é apurar e ter a verdade total dos fatos”, declarou.
Segundo o prefeito, a prioridade é reorganizar os serviços e garantir o uso correto dos recursos públicos. “Também temos que ver o que pode melhorar e aprimorar nos serviços, tanto no atendimento quanto no cuidado com os recursos públicos”, completou.
O que dizem as defesas
A defesa de Humberto Silva foi procurada, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem. Em nota, a defesa de Tássia Nunes afirmou que ninguém pode ser considerado culpado antes do devido processo legal e que a antecipação de juízos condenatórios viola o princípio constitucional da presunção de inocência. Também por meio de nota, a defesa de Maíne Baccin informou que está realizando uma análise detalhada de todos os documentos e informações constantes no inquérito.
Nota de Tácia Nunes
"No Estado Democrático de Direito, ninguém pode ser tratado como culpado antes do devido processo legal, com contraditório, ampla defesa e decisão judicial fundamentada, devendo ser observado, com absoluto rigor, o sistema acusatório adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, que assegura a separação entre investigação, acusação e julgamento. A antecipação de juízos condenatórios viola a presunção de inocência e a dignidade da pessoa humana.”
Nota de Maíne Baccin
"O escritório Maciel Advogados, patrocinando os interesses de Maíne Baccin, vem informar que, em razão da complexidade dos fatos, está analisando os documentos juntados ao Inquérito Policial. Ressalta-se, ainda, que o processo encontra-se em segredo de justiça, o que torna inviável qualquer manifestação neste momento."
Nota do Governo
"A empresa Campi, responsável pelo acolhimento de 93 pessoas adultas portadoras de deficiência mental, comunicou institucionalmente o afastamento do diretor citado nas investigações e mantém a prestação dos serviços sem prejuízo aos atendimentos. A instituição é fiscalizada mensalmente pelas equipes técnicas da Fundação de Proteção Especial (FPE), não havendo, até então, qualquer irregularidade identificada em relação aos serviços executados.
O termo de referência que embasou a contratação da empresa foi elaborado por um grupo de trabalho composto por diversos órgãos, em discussões realizadas entre 2018 e 2023, considerando a natureza especializada do serviço de assistência social e as exigências de estrutura e expertise necessárias. A Central de Licitações do Estado (Celic), que conduziu a licitação, destaca que toda e qualquer conduta que tenha por objetivo frustrar o caráter competitivo de processos licitatórios deve ser rigorosamente apurada pelos órgãos competentes e se coloca à disposição para ajudar nesse processo.
Cabe informar que a FPE não recebeu, até o momento, qualquer notificação ou citação por parte dos órgãos de investigação. Ainda assim, a instituição reafirma seu compromisso com a legalidade, a lisura, a transparência na gestão dos recursos públicos e a oferta de serviços de qualidade às pessoas acolhidas e também se coloca à disposição das autoridades."
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Divulgação/Polícia Federal
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